A doença de Legg-Calvé-Perthes, mais conhecida como doença de Perthes, é uma necrose avascular da cabeça do fêmur (quadril) que acontece nas crianças, e que não apresenta causa bem definida. Em outras palavras, podemos dizer que “do nada” o quadril da criança deixa de receber sangue, e a cabeça do fêmur “morre”, podendo se deformar com o passar do tempo.
Esta doença não tem um motivo para ocorrer, porém sabemos que o que ocorre é uma interrupção do fluxo de sangue para a cabeça do fêmur. Ela acomete pacientes em idade escolar (geralmente entre 4-8 anos de idade) do sexo masculino. Sabemos também que a característica genética da doença não é bem esclarecida, não sendo comuns casos familiares.
Em primeiro lugar, é importante sabermos que a doença passa por 4 estágios bem definidos:
Imagem que demonstra a fase de Necrose no quadril direito (D) do paciente. As alterações nesta fase na radiografia são bastante sutis, e muitas vezes o diagnóstico pode passar despercebido. Ocorre um “esbranquecimento” da cabeça do fêmur e um escurecimento do colo do fêmur. Geralmente não há deformidades, mas a cabeça do fêmur pode estar levemente menor do que a do outro lado.
Imagem que demonstra a fase de Fragmentação do quadril direito (D) do mesmo paciente. Veja como a cabeça femoral parece estar apresentando uma perda de osso, ou seja, parece estar se “esfarelando”. A cabeça do fêmur geralmente apresenta traços de “fissuras” verticais no início desta fase.
Imagem que demonstra a fase de Reossificação do quadril direito (D) do mesmo paciente. Perceba como há osso novo nas bordas da cabeça, um osso bem branco. Porém, no centro da cabeça do fêmur ainda falta formar osso.
Imagem que demonstra a fase de Residual no quadril direito (D) de outro paciente. Note que apesar da deformidade em relação ao outro lado, a qualidade e textura do osso são normais. A doença nesta fase não está mais em atividade.
Após entender as fases, segue um resumo do que ocorre:
Esta pergunta não é tão difícil de responder: existem várias formas de tratar a doença! Contudo, a pergunta de “1 Milhão de Dólares” é: qual é o tratamento mais adequado para cada paciente? Infelizmente, em relação a esta pergunta temos trabalhos mostrando que ainda não conseguimos dizer qual a melhor forma de tratamento no momento (Galloway, 2020 ; Braito, 2020). Portanto, vamos expor aqui algumas opções de tratamento possíveis:
O tratamento conservador diz respeito às formas de abordagem que não envolvem cirurgias. Dentre as mais usuais estão:
É importante entender que as opções de tratamento sem cirurgia podem ser usadas em conjunto ou separadas. Como dito anteriormente, a última revisão sistemática a respeito da comparação dos tratamentos conservadores não mostrou superioridade de uma forma de tratamento sobrea outra (Galloway, 2020).
O tratamento conservador pode ser indicado em qualquer idade, contudo é mais utilizado para pacientes que iniciaram os sintomas da doença de Legg-Calvé-Perthes abaixo dos 6 anos de vida.
O tratamento cirúrgico tem como objetivo fazer com que a cabeça do fêmur fique dentro do acetábulo, para que ela fique o mais redonda possível ao final do processo da doença. Dentre as opções mais utilizadas temos:
OBS: o termo osteotomia quer dizer “corte no osso”.
Dentre as opções de cirurgia, a mais comum é a Osteotomia do Fêmur. As cirurgias geralmente são indicadas em pacientes que não estão evoluindo muito bem e que iniciaram os sintomas da doença após 6-8 anos de idade.
Exemplo de tratamento cirúrgico do quadril esquerdo do paciente com a técnica da artrodiastase com fixador externo.
Enfim, chegamos ao tema principal de discussão neste artigo! Vamos às explicações..
O tema da retirada de carga na doença de Perthes sempre foi bastante controverso. Muitos especialistas acreditam que ficar sem pisar no chão não faça diferença em relação a simplesmente evitar que a criança corra ou pule. Além do mais, a maioria dos colegas (com razão!) diz ser muito complicado manter uma criança entre 4-8 anos sem tocar a perna afetada no solo por longos períodos. Por isso, a retirada de carga ficou sem ser estudada e praticada por muitos anos.
Foi no ano de 2012 que a percepção da comunidade científica começou a mudar. Um estudo realizado em animais conseguiu evidenciar que aqueles que ficaram sem pisar no chão tiveram menos deformidade na cabeça do fêmur do que aqueles que continuaram pisando após a indução da doença. (Kim, 2012).
Recentemente, foram publicados 2 estudos interessantes em humanos a respeito do tema. O primeiro deles que gostaríamos de ressaltar é um estudo que foi publicado em 2020 (Aarvold, 2020) e mostrou que a cabeça do fêmur de pacientes em estágios iniciais da doença se deforma quando submetida à pressão de simplesmente ficar em pé. A deformidade conseguiu ser vista em um aparelho de ressonância magnética que consegue fazer as imagens com o paciente em pé.
Imagem do artigo supracitado, demonstrando como a cabeça do fêmur de um paciente sem a doença de Legg-Calvé-Perthes se comporta deitado (a) e de pé (b). Não há mudança na forma da cabeça. Por outro lado, em um paciente com Legg-Calvé-Perthes deitado (c) a cabeça do fêmur tem um formato, e se achata (d) quando o paciente fica de pé.
O segundo estudo foi publicado em 2021 (Peck, 2021) e demonstrou que os pacientes que ficaram sem pisar por tempo prolongado nas fases iniciais da doença (necrose e fragmentação) evoluíram melhor do que aqueles que continuaram pisando no chão. Este estudo, pelo nosso conhecimento, foi o primeiro que conseguiu comparar dois grupos de pacientes que tinham uma chance de evolução ruim (constatada por uma ressonância de perfusão, feita no início da doença), demonstrando um melhor resultado nos pacientes que tiveram maior restrição de carga.
Em conclusão, existem evidências científicas bastante recentes que sugerem que a retirada de carga nos estágios iniciais da doença de Legg-Calvé-Perthes, além de fazer sentido, realmente pode ajudar a prevenir o colapso da cabeça femoral de forma significativa.
***Em primeiríssimo lugar, ao contrário do que foi exposto nos parágrafos anteriores, ressaltamos que o que será lido neste parágrafo não é baseado em evidências científicas, mas sim na experiência do autor.
Bom, essas são as perguntas mais frequentes feitas pelos alunos e residentes quando se discute retirada de carga na doença de Legg-Calvé-Perthes. Para início de conversa, é importante entender que a retirada de carga (ficar sem pisar no chão) é um processo voluntário, em que a criança e a família vão precisar cooperar para que se consiga implementar esta medida de forma efetiva. Logo, sem uma boa explicação não é possível fazê-los entender a importância da conduta. Para isso, algumas informações são efetivas no convencimento.
Costumamos iniciar a conversa explicando que durante a fase de necrose e fragmentação a cabeça do fêmur fica fraca. Usualmente, fazemos a comparação da cabeça do fêmur normal com uma bola de sinuca, que é rígida e mesmo com traumas frequentes do taco de sinuca ela não se deforma. Depois, explicamos que com a doença de Legg-Calvé-Perthes, é como se a bola de sinuca se transformasse em uma bola de sorvete que acabou de sair do congelador. Ou seja, ela ainda é dura, mas vai sendo sujeita a deformidades se pressionada (como quando tentamos pegá-la com uma colher).
Imagem de uma bola de sinuca. A cabeça do fêmur normal é redonda e rígida, como uma bola de sinuca, e suporta impactos diários de corridas, caminhadas e saltos sem se deformar.
Fonte: canva.com
Ao passo que a doença vai avançando, é como se a bola de sorvete fosse ficando mais mole, pois está derretendo. Quando ela fica mais mole é justamente na fase de fragmentação, a segunda fase da doença de Legg-Calvé-Perthes. Explicamos que quando a bola de sorvete está mole, qualquer impacto que damos nela com uma colher ou com o dedo, por exemplo, pode causar uma deformidade que a deixa menos redonda. Por isso, durante essas fases em que a bola de sorvete está fora do congelador – fase de Necrose e Fragmentação– , precisamos proteger a cabeça do fêmur de impactos, ou seja, de pisar no chão.
Comparação das bolas de sorvete. A bola de sorvete à sua esquerda está redonda, visto que acabou de sair do congelador. Ela representa a cabeça do fêmur nos estágios iniciais da doença de Perthes, quando ainda naão sofreu deformidades. Já a bola de sorvete à sua direita está mais mole e sofreu impacto, perdendo o seu formato redondo. Ela representa a deformidade da cabeça do fêmur que ocorre nos casos em que o paciente dá muito impacto durante as fases de necrose e fragmentação.
Fonte: canva.com
Depois que se inicia a fase de Reossificação, ou seja, quando começa a se formar osso novamente na cabeça do fêmur, é como se colocássemos a bola de sorvete dentro do congelador novamente. Aqui, é importante entender que se a bola ficou redonda enquanto ficou mole, ela vai recongelar redonda. Por outro lado, se ela sofreu traumas e amassou enquanto estava mole, irá recongelar deformada. Por fim, devemos lembrar que quanto mais redonda a cabeça do fêmur ficar no final do processo, melhor será o resultado.
Bolas de sorvete representando os resultados finais possíveis. Imagine que estas bolas de sorvete foram recolocadas no congelador. À sua esquerda, a bola está redonda e representa um bom resultado. À sua direita a “bola”de sorvete está amassada e perdeu o seu formato esférico, representando um resultado final ruim.
Fonte: canva.com
Com essa simples comparação podemos tirar algumas lições:
Daí a reação é sempre de espanto! Sim, claro, um ano é muito tempo! Quanto a isso, o estudo supracitado de 2021 (Peck, 2021) nos mostra um tempo médio de retirada de 11 meses, variando de 7 a 17 meses…
Ao longo de alguns anos tratando pacientes com Legg-Calvé-Perthes, o melhor argumento que encontramos foi explicar para a família e o paciente que este “ano” sem pisar é muito importante, e que vai fazer diferença para o resto da vida do paciente. Portanto, lembramos que uma cabeça achatada e deformada ficará assim para sempre – trazendo dificuldades e dor para o paciente na fase adulta por artrose – ao passo que uma cabeça redondinha e congruente também ficará assim para sempre, trazendo qualidade de vida e capacidade funcional para desempenho de atividades físicas de maneira mais adequada na vida adulta.
Após esta discussão aprendemos que:
Nota: As informações contidas neste artigo são de caráter meramente informativo e não substituem uma consulta médica. O Núcleo de Ortopedia Especializada conta com especialistas em todas as áreas de atuação da ortopedia moderna.
6. International Perthes Study Group Website
Os pacientes que finalizam a doença com cabeças do fêmur muito deformadas tendem a sentir dor e incapacidade funcional na fase adulta da vida. Nestes casos, existem opções de cirurgias para melhorar o formato da cabeça do fêmur e também existe a opção de realizar uma prótese de quadril, que é bastante eficaz na melhora dos sintomas.
Esta pergunta, infelizmente, ainda não tem uma resposta comprovada cientificamente. Contudo, a nossa experiência diz que a cadeira de rodas é a opção mais segura, principalmente para pacientes menores do que 8 anos de vida e para longas distâncias. Pacientes acima de 8 anos de idade muitas vezes conseguem cooperar bem com muletas e andadores, porem para longas distâncias podem fiar cansados e necessitar de cadeiras de rodas.